Um estranho plantão noturno
#Terça- feira noite#
Alfredo chegou às 19:15, um pouco atrasado para seu plantão noturno no Hospital federal do Andaraí. Saíra de casa bem agasalhado, a noite estava bem fria, com uma lua cheia brilhante e um vento atípico, que parecia sussurrar, algo de arrepiar a espinha.
Sentia como se algo fosse acontecer, um clima de suspense no ar, mas como não é dado a feelings, logo afastou essa sensação estranha e pôs se a trabalhar.
Deu uma volta pelos corredores do serviço de terapia intensiva. O CTI se dispõe como um retângulo, nas laterais os leitos, ao fundo, os medicamento e instrumentos, na frente, a porta de entrada, o lavabo, e ao centro, os computadores e as cadeiras. As paredes do CTI exibem relógios parados sempre no mesmo horário. Não há janelas.
Alfredo olhava leito por leito, na tentativa de lembrar os casos e ver se havia paciente novo, Antônio, Fátima, Maria, Celina, José e Regina.
Novamente, retorna a sensação estranha, sentiu o olhar dos pacientes penetrando sua alma, como se eles pudessem ver além de sua imagem, ver seus pensamentos. Ficou bastante inquieto, mas logo chegou o médico rotina, que ainda não havia ido embora e o tirou daquela nuvem de pensamentos inquietantes. Enquanto o rotina seguia falando sobre a evolução dos pacientes, Alfredo que não prestava mais atenção, buscava mentalmente uma justificativa para aquela sensação. Estou em jejum? Bebi muito café hoje? Tenho dormido mal. Retornando ao que o rotina falava, perguntou sobre o que havia acontecido com o leito 3 que estava vazio, paciente tinha subido para a enfermaria ou foi á óbito?
O rotina, com expressão pesarosa, disse que a jovem paciente de 25 anos tinha falecido. Lamentou a forma como as coisas se sucederam e seguiu passando os demais leitos. O residente também se juntou a eles, ouvindo. Os enfermeiros que normalmente se comportam como em uma feira de peixe, estavam atipicamente quietos, quase robotizados. Nenhum barulho externo além da voz do rotina ainda passando os casos.
Alfredo agora diante do leito 1 se paramenta para examiná-lo. Evita encarar o paciente para não deixar aquela sensação se exacerbar. É um paciente que sofreu um acidente vascular isquêmico, tem 56 anos e se chama Antônio. Como de praxe, João se posiciona ao lado do paciente preocupado em avaliar a parte neurológica. Avaliar a interação do paciente, se ele está orientado em relação ao espaço e ao tempo. Antônio está de olhos abertos, mas não interage com o examinador, é um olhar vago, longe. Alfredo examina suas pupilas, o chama pelo nome, tenta uma interação, pede que o paciente aperte sua mão e nada. João verifica ao lado que o paciente não está sedado e pergunta ao residente há quanto tempo o paciente está sem receber sedação.
De repente, o paciente aperta a mão de Alfredo, forte, o que o toma de assalto, um susto. Alfredo se depara agora com um olhar penetrante do paciente que balbucia “está chegando a minha hora”. Alfredo tenta esconder o susto e acalma o paciente que logo retorna ao seu olhar vago habitual.
Na cabeça de Alfredo ficava cada vez mais nítida a sensação de que algo estranho estava acontecendo embora ele oscilasse, ora confirmando isso, ora tentando ser pé no chão. Mas o que de estranho pode estar acontecendo? Nada, estou aqui trabalhando, normal, minha família está bem, não está acontecendo nada demais.
– Alfredo, dê uma olhada no leito 4, por favor. A frequência cardíaca está muito baixa. Disse a enfermeira.
Alfredo segue em direção ao leito quatro e de longe já avista o monitor marcando 52 batimentos por minuto. Alfredo fica alerta e verifica o pulso da paciente. Pulso forte, amplo. Conta ele próprio a frequência cardíaca, 120 bpm. Se dirige então a enfermeira:
-Verifique os fios, por favor.
Antes de sair, dá uma olhada de rabo de olho para a paciente, que estava dormindo, mas que parecia sorrir sarcasticamente para ele. Eu só posso estar ficando doido, ou alguém botou alguma coisa alucinógena na minha bebida, das duas uma.
Pede ao residente que passe a visita aos leitos e depois discuta os casos com ele. Alega muita dor de cabeça.
Contudo, antes de sair em direção ao quarto dos médicos, de repente, todas as máquinas desligam.
Silêncio absoluto no CTI.
A luz do teto pisca, uma, duas, três vezes, o relógio de pulso apita, é meia noite, a porta do CTI abre e fecha com a força do…vento?que vento? O que tá fazendo a porta abrir e fechar?
Um clima de tensão toma conta do CTI, médicos e enfermeiros se entreolham e essa é a última lembrança de Alfredo antes de se deparar deitado no leito 1, com os braços amarrados, como é de praxe para os pacientes mais agitados. Leito 2, a enfermeira chefe. Leito 3, o residente. Leito 4, o rotina. Leito 5, o técnico de enfermagem. Leito 6, outro enfermeiro.
Mas que diabos está acontecendo? Quando mal acabara de pronunciar essas palavras, Alfredo olha aterrorizado para o lugar onde normalmente se passa o round, centro do CTI, e se depara com os pacientes, rindo, falando, andando, to- dos.
Seu Antônio, antigo leito 1, se aproxima de Alfredo, devagar, arrastando o cateter vesical e demais acessos, acende um cigarro e pergunta: – E aí, o senhor sabe onde você está?
Ao que todos os antigos pacientes gargalham.
Alfredo: – O que?
Antônio: – Bota aí, Fátima, Alfredo não está LOTE. (Novas gargalhadas)
A cena era tão surreal, que os demais profissionais da saúde estavam mudos, perplexos com o que viam.
Antônio: – Eh, eu te disse que estava chegando a minha hora.
Regina subiu em cima da cadeira, com um copo de whisky na mão e disse:
– Vamos brindar!Vamos brindar ao melhor plantão da cidade do Rio de Janeiro!!
(Gargalhadas)
-Espera, espera, espera, está faltando nossa convidada de honra…uuuuuuuhhhhh
– Entra, Helena!
Eis que surge Helena pela porta do CTI, a paciente de 25 anos que havia falecido, envolta no plástico preto e diz:
– Nossa, isso aqui tá muito desanimado, parece até que morreu alguém.
(Gargalhadas sem fim)
Helena:- Vamos colocar uma música antes de passar a visita aos nossos pacientes.
Enquanto isso, Regina e José se divertiam um colhendo gasometria no outro e levando até a máquinha.
Regina:- Acidose mista!!! rs
José: – Alcalose respiratória!!! rs
Antônio propõe começar o round pelo leito 3, que será conduzido pela convidada de honra.
Celina começa a tocar violino.
Helena: – Gostaria de começar o round dizendo a frase preferida do nosso rotina: “Esse paciente teve dois azares. O primeiro de ter a doença e o segundo de ter procurado o hospital do Andaraí.”
(Risos)
Meu nome é Helena, tinha 25 anos e entrei aqui para tratar uma pneumonia. Tenho como comorbidade DM tipo 1 que estava descompensada quando cheguei aqui. Já no primeiro dia, fui puncionada pelo nosso residente, atual leito 3, que me deu de presente um pneumotórax. Ele até solicitou o Raio x pós punção, mas que lástima, foi embora sem verificar o Raio x.
Não demorou pra que eu tivesse uma parada cardiorrespiratória e fosse atendida por uma equipe completamente atrapalhada. Comprimiam meu tórax sem que a tábua de apoio fosse colocada atrás de mim, logo as compressões não eram eficazes, o carrinho do choque demorou pra chegar e alguém resolveu contar o tempo só depois da chegada do carrinho. Surpreendentemente voltei da parada, mas voltei diferente. Não sabia direito definir o que tinha me acontecido até escutar o rotina nomear no outro dia: “tadinha, ficou com o chip queimado, muito tempo de parada”.
Pois bem, fiquei com o chip queimado, vulgo vegetal, no auge dos meus 25 anos. Eu estava me preparando pra ser professora, ia me casar ano que vem. Adorava viajar e acreditava nas pessoas. Sobretudo, confiava na responsabilidade dos profissionais de saúde e vi aqui um mar de negligência e iatrogenias. Minhas últimas horas de vida foi como um vegetal, você tem noção de como é isso? Não consegui dizer tchau para minha família, não consegui viver meu amor, não consegui ter filhos. Minha vida foi brutalmente interrompida porque ele não esperou para verificar a p**** do Raío x!!! E eu ainda estava taquipnéica!!”
Celina neste momento para de tocar o violino e diz:
– Helena, fiz uma música em sua homenagem e gostaria de cantar pra vc:
(Tenha em mente o ritmo de Robocop gay- Mamonas Assassinas)
Um tanto quanto irônico
Ai com I maiúsculo
Vejam só minhas úlceras
Que com desdém cultivei
Minha perna é edema
Em formato cilíndrico
Sempre me apertam ao exame
Mas o porquê eu não sei
A minha vida não vale nada
Mas esse assunto é tão místico
Devido a um ato cirúrgico
Hoje eu me lasquei
O meu pulmão é mecânico
Com movimentos atômicos
Sou um amante de nora
Com direito a diálise
Um ser humano marginal
Sem direitos básicos
Foi numa punção profunda
Por onde eu me compliquei
E hoje estou tão mortinha
Com mil disfunções orgânicas
Ontem eu era tão iludida
Ai, hoje eu sou estatística
Você pode ser médico
Paciente ou professor
Se você mora no RJ
Morre a cada minuto
Você pode ser médico
Paciente ou professor
Tem gente morrendo de tiro
Indo trabalhar
Viva bem o presente
O amanhã é obscuro
453 homicídios
Só em abril…
Viva bem o presente
Mesmo que ele seja um caos
52000 roubos registrados
As olimpíadas vem aí…
Uma estatística, uma mera estatística, ah, é o que eu sou, ah, é o que você é é é ….
Helena: – Celina, estou emocionada, muito sensível sua música.
Celina: – Vou aproveitar e já passar o leito 1. Bom, Alfredo, nosso plantonista de terça noite, colocou no prontuário que eu estava no D1 de ATB tópico para minha infecção no ouvido. Internos e residentes continuaram, D2, D3, D4….D7!!! Hoje estou no D7, em tratamento somente no prontuário, nunca recebi o ATB e ninguém até então não verificou ou examinou meu ouvido. Tem cabimento? Todo mundo só toca o serviço. O papel nunca traz a verdade.
Helena: – Celina, eu também preparei algo pra você, fiz um poema:
Meu hospitais tem vários médicos
Em que não posso confiar
Os médicos que aqui trabalham
Não trabalham como no particular
Nossos cidadãos tem esperança
Nosso governo tem ganância
Nossos hospitais: iatrogenia, negligência e desesperança
E cismar, sozinha, à noite
Mais medo encontro eu cá
Meu hospital não tem remédio
Nem gente pra trabaiá
Minha cidade tem horrores
Que tais não encontro em outro lugar
Em cismar- sozinho, à noite-
Eu só penso em melhorar
Meu hospital não tem remédio
Nem gente pra trabaiá
Não permita Deus que eu morra
Sem eu que eu volte pra família
Sem que eu consiga um pouco mudar
Nossa sociedade também doentia
Sem qu´inda aviste solução
Onde canta a ética
Celinha: – Bravo!!!
Maria: – Peço permissão pra passar o leito 2 agora. Sim, temos mais um chip queimado aqui, com o agravante de que eu não morri. Ainda sou um vegetal.
Nossa enfermeira chefe demorou para reconhecer/avisar aos médicos que eu estava com uma severa hipoglicemia. Me dói muito ver minha filha tentando conversar comigo, queria poder dizer pra ela que a amo.
São tantos erros com consequências desastrosas. Erro vai, negligência vem e dificilmente há cobrança dos profissionais de saúde. Estão relaxados para se permitir errar. Lidam com pessoas pouco instruídas, como nós, sem alternativas, que dificilmente contestarão suas atitudes.
Hoje viemos aqui pra cobrar mudanças e nos vingar!!”
***Som alto de um alarme***
Alfredo acorda suado em sua casa, coração na boca, acabava de acordar de um pesadelo super estranho e estava atrasado para seu plantão noturno de terça noite no Hospital Federal do Andaraí.
Era uma noite bem fria, com uma lua cheia brilhante e um vento atípico…
Autora: Walesca Reis Ribeiro – Acadêmica da Escola de Medicina e Cirurgia da UNIRIO.