Vocação, sacerdócio ou mercado? Escolhi ou fui escolhido?

Muitos de nós, profissionais da área de saúde, somos tão apaixonados pela profissão que dizemos que não a escolhemos, mas que fomos escolhidos por ela. Será? Acredito que sim.

Entrar em um curso superior da saúde, não é uma tarefa impossível – embora seja difícil – mas implica em uma palavrinha chamada ABNEGAÇÃO. Abrir mão de uma coisa em prol de outra.

Significa deixar de lado muitas saídas no final de semana, estudar mais, se dedicar mais, enfim, é preciso querer muito. Mas até aí, tudo bem. Essa é a parte fácil.

Começa a graduação e você descobre que o curso dos seus sonhos era bem diferente do que imaginava, com especialidades que sequer havia ouvido falar. O sonho dourado começa a ofuscar, pois os professores apresentam um cenário mais perto da realidade que não é tão dourado assim, nem tão brilhante como os jalecos e estetoscópios dos nossos sonhos.

E aí vem os estágios… Os alunos se apresentam como se soubessem de tudo e descobrem que não sabem de nada ainda. A prática é um cheiro da teoria e que na verdade é a experiência que realmente conta. O conhecimento acadêmico é a base (essencial), mas a prática é fundamental. Afinal tratar da dor crônica de um paciente com livros é fácil, mas olhar nos olhos dele e sentir o quanto isso o incapacita é o que realmente importa.

Aparece no cenário uma matéria que não é dada em nenhum dos cursos de saúde: EMPATIA. Colocar-se no lugar o outro começa a te fazer entender que o ser humano não é um amontoado de células e sistemas. Muitos dos belos jovens sonhadores de jaleco desistem, afinal sentir a dor do outro é bem difícil… muito mais que passar em histologia ou entender o Ciclo de Krebs. Segurar a mão de um paciente jovem terminal que olha nos seus olhos em busca de uma fagulha de esperança é muito mais difícil do que aprender a origem, inserção, ação e inervação dos músculos. Nesse momento você começa a entender o peso que tem um jaleco branco.

A graduação termina, mas o pânico não. Você se forma, mas morre de medo de sair da faculdade, pois entende quão é importante a sua boa atuação e o quanto de esperança aqueles que cruzarem o seu caminho depositarão em você. Além disso, as incertezas do mercado do trabalho: pagamento sem carteira assinada, salário atrasado, saúde caótica, menos profissionais do que o necessário para um bom atendimento, exploração da mão de obra com salários muito abaixo do piso. Ninguém ensina como vai ser a vida profissional em termos práticos, o que fazer, ou qual caminho seguir.

Com muito esforço você consegue uma colocação no mercado. Nesse momento descobre a realidade da saúde brasileira. Vai ter que internar no corredor, pois o hospital estará super lotado e 3 pacientes graves precisando de um leito no CTI e apenas 1 vaga. Vai faltar antibiótico, gaze, sonda, ventilador e invariavelmente você vai perder um paciente porque o ventilador quebrou e não tinha outro, porque a ambulância não chegou, porque faltou o básico. Você sabia o que fazer, a equipe sabia, mas tinha como fazer.

Aqueles mesmos que você jurou cuidar quando estava de beca no dia da sua colação, com o braço esticado e com o coração cheio de amor e esperança, não serão muito simpáticos. Algumas vezes irão lhe ameaçar, xingar, reclamar quando depois de 12 horas ininterruptas de plantão você parar 15 minutos para jantar. Não serão poucas as vezes que ouvirá, que mesmo com salário atrasado há 3 meses você deve ir trabalhar, sem reclamar, mesmo preocupado em como honrará os seus compromissos.

E mesmo assim… você resiste. Sabe o motivo? Porque você vai se refazer ao olhar o sorriso de uma criança que melhorou ir embora, ao ouvir um paciente segurar a sua mão dizer muito “obrigada”, ao trazer de volta alguém que já havia cruzado a fronteira da vida, ao ouvir de um paciente “muito obrigada por não ter desistido de mim!” . Porque seu coração vai se encher de alegria quando um paciente desenganado conseguir levantar do leito pela primeira vez, quando no round for decidido que aquele outro que você passou noites cuidando, vai para a semi-intensiva para ter alta, quando na visita algum familiar te agradecer por ter dado o seu melhor.

Deitar a cabeça no travesseiro, nas poucas noites que passamos em casa, com a sensação de ter feito o seu melhor, é inenarrável. Sabe o que isso significa? Significa que a sagrada Ciência da Saúde te escolheu.